Os Teus Dedos

rosa lobato faria

Os teus dedos escorrendo como leite

como mel como chuva como sumo.

A sombra do meu ombro no tapete.

Os teus beijos ardendo ao pé do lume.

Que sede que silêncio que sonata

que saudade de sermos sempre assim;

a maçã sobre a salva ainda intacta

a serpente singrando sobre mim.

Rosa Lobato de Faria

Se Eu Morrer de Manhã

rosa lobato faria

Se eu morrer de manhã
abre a janela devagar
e olha com rigor o dia que não tenho.

Não me lamentes. Eu não me entristeço:
ter tido a morte é mais do que mereço
se nem conheço a noite de que venho.

Deixa entrar pela casa um pouco de ar
e um pedaço de céu
– o único que sei.

Talvez um pássaro me estenda a asa
que não saber voar
foi sempre a minha lei.

Não busques o meu hálito no espelho.
Não chames o meu nome que eu não venho
e do mistério nada te direi.

Diz que não estou se alguém bater à porta.
Deixa que eu faça o meu papel de morta
pois não estar é da morte quanto sei.

Rosa Lobato de Faria

Primeiro a Tua Mão Sobre o Meu Seio

rosa lobato faria

Primeiro a tua mão sobre o meu seio.

Depois o pé – o meu – sobre o teu pé.

Logo o roçar urgente do joelho

e o ventre mais à frente na maré.

É a onda do ombro que se instala.

É a linha do dorso que se inscreve.

A mão agora impõe, já não embala

mas o beijo é carícia, de tão leve.

O corpo roda: quer mais pele, mais quente.

A boca exige: quer mais sal, mais morno.

Já não há gesto que se não invente,

ímpeto que não ache um abandono.

Então já a maré subiu de vez.

É todo o mar que inunda a nossa cama.

Afogados de amor e de nudez

somos a maré alta de quem ama

Por fim o sono calmo, que não é

senão ternura, intimidade, enleio:

o meu pé descansando no teu pé,

a tua mão dormindo no meu seio.

Rosa Lobato de Faria

Acabei de Ler – As Esquinas do Tempo

esquinas do tempo

Estive vários dias a começar livros e a abandoná-los quase de seguida. Nada me enchia as medidas, coisa que acontece frequentemente. É o cérebro a dizer que precisa de descanso de tantas histórias. Resolvi dar uma arrumação ao Kindle, apagar coisas que já li ou que nunca vou ler e foi depois da casa arrumada que peguei neste livro da Rosa Lobato de Faria. Nunca falha, esta senhora. Já aqui falei de outros dois livros dela que li (Os Três Casamentos de Camilla S. e Romance de Cordélia), e a minha opinião continua a ser a mesma. Como é possível que ela não tenha mais leitores?

Este Esquinas do Tempo é um bocadinho diferente dos anteriores, talvez se possa dizer que é realismo mágico. Margarida é uma mulher independente do século XXI, professora de matemática, solteira, que vai dar uma palestra ao norte. Fica hospedada num antigo solar, estranho e fantasmagórico, e quando acorda no dia seguinte percebe que andou 100 anos para trás. Continua a ser Margarida, com as mesmas duas irmãs, mas é agora uma donzela rica, filha de boas famílias. E é ao entrar neste papel que a sua vida vai mudar radicalmente.

Esta ideia que as mesmas pessoas vão aparecendo sucessivamente na história e no tempo não é propriamente nova, mas é sempre interessante quando é bem feita. E foi esse o caso. Há sempre espaço para reflexão nestas histórias da Rosa Lobato de Faria, para pensarmos na condição social da mulher, nas suas dificuldades mas também na sua resiliência e capacidade de adaptação. Tal como os outros livros, este também não tem um final de conto de fadas, apesar de ser uma história de amor. Entre outras coisas. Nos três livros que li até agora há sempre um toque de trágico, ou dramático, sem ser miserabilista.

Esta senhora escrevia muito bem, e sabe contar histórias, manter-nos agarrados até ao final. Felizmente ainda tenho alguns livros pela frente, para ir saboreando lentamente, como um bom vinho.

Recomendo muito, a todos os que gostam de ler, mesmo não sendo o meu favorito desta escritora.

Rumo ao próximo, até lá Boas Leituras! 

Goodreads Review

 

 

Um Dia Virá

rosa lobato faria

Um dia virá

em que a minha porta

permanecerá fechada

em que não atenderei o telefone

em que não perguntarei

se querem comer alguma coisa

em que não recomendarei

que levem os casacos

porque a noite se adivinha fresca.

Só nos meus versos poderão encontrar

a minha promessa de amor eterno.

Não chorem; eu não morri

apenas me embriaguei

de luz e de silêncio.

Rosa Lobato de Faria

Acabei de Ler – Romance de Cordélia

romance de cordelia

Começo por dizer que sou um bocadinho preconceituosa. Todos somos em relação a alguma coisa, no meu caso era em relação à Rosa Lobato de Faria. Talvez pelo seu ar sereno e altivo, eu achava que a senhora era uma aristocrata sem grande coisa para dizer que me interessasse. Claro que o facto dela ter participado em programas do Herman me devia ter chamado a atenção, mas só quando li em 2020 um dos seus romances é que percebi que estava redondamente enganada, e que não podia deixar os seus livros de lado, sob pena de perder pérolas.

Os Três Casamentos de Camilla S. foi um livro belíssimo e muito bem escrito, que mesmo assim não me preparou para o que viria a encontrar n’O Romance de Cordélia. Peguei nele porque achei o título uma delícia, este trocadilho entre romances de cordel (que li muito nas minhas férias de verão do início da adolescência, o suficiente para perceber que todos têm uma estrutura igual) e o nome da protagonista é fantástico. Depois o modo como estes romances são retratados tem também um toque de mestre, e enriqueceu muito a leitura.

Cordélia é reclusa em Tires e está a preparar-se para a sua saída, que está iminente. Parte da preparação consiste em relembrar todo o seu percurso até chegar ali, coisa dolorosa e difícil. Partilha o seu dia a dia com outras colegas, cujas histórias são baseadas em histórias reais, recolhidas pela autora. E aí começa o aperto no nosso coração. É um livro forte, triste, carregado de relatos impressionantes. Mas ao mesmo tempo está cheio de cenas belas, de um sarcasmo e duma ironia que são refrescantes, e ajudam a não nos sentirmos sufocados com tanta desventura. Fala-nos do sentido de família, das teias em que nos deixamos enredar porque não temos força para sair, e, tal como o livro que li anteriormente, das escolhas que fazemos que nem sempre são as melhores.

É uma história com pouca redenção e pouco romance, mesmo de cordel, mas é muito bonita e está maravilhosamente escrita. É preciso algum estômago, porque tem alguns relatos fortes. No entanto, aconselho a todos os que gostam de boa literatura, boas histórias com sabor português. Não se irão arrepender.

Boas Leituras!

Goodreads Review

De Ti Só Quero o Cheiro dos Lilases

rosa lobato faria

De ti só quero o cheiro dos lilases
e a sedução das coisas que não dizes
De ti só quero os gestos que não fazes
e a tua voz de sombras e matizes

De ti só quero o riso que não ouço
quando não digo os versos que compus
De ti só quero a veia do pescoço
vampira que já sou da tua luz

De ti só quero as rosas amarelas
que há nos teus olhos cor das ventanias
De ti só quero um sopro nas janelas
da casa abandonada dos meus dias

De ti só quero o eco do teu nome
e um gosto que não sei de mar e mel
De ti só quero o pão da minha fome
mendiga que já sou da tua pele.

Rosa Lobato de Faria, A Noite Inteira já não chega

Pequenas Palavras

rosa lobato faria

De todas as palavras escolhi água,
porque lágrima, chuva, porque mar
porque saliva, bátega, nascente
porque rio, porque sede, porque fonte.
De todas as palavras escolhi dar.

De todas as palavras escolhi flor
porque terra, papoila, cor, semente
porque rosa, recado, porque pele
porque pétala, pólen, porque vento.
De todas as palavras escolhi mel.

De todas as palavras escolhi voz
porque cantiga, riso, porque amor
porque partilha, boca, porque nós
porque segredo, água, mel e flor.

E porque poesia e porque adeus
de todas as palavras escolhi dor.

Rosa Lobato de Faria

Acabei de Ler – Os Três Casamentos de Camilla S.

camilla S

Andava há muito tempo para ler algum livro da Rosa Lobato Faria. Tinha algum preconceito talvez pelo seu ar de senhora composta, mas quando estive a investigar sobre o Humor de Perdição percebi que ela tinha sido parceira de escrita do Herman José e isso só podia augurar coisas boas. Depois vi no Instagram uma citação deste livro e achei que estavam reunidas as condições para me atirar a ele.

E foi mesmo isso que aconteceu, já que o li de um dia para o outro. Camilla S. é uma nonagenária que decide partilhar connosco a sua história de vida, os seus amores e desamores e a sua transição de criança, para jovem mulher vulnerável, para mulher madura e segura de si. Uma espécie de Casa dos Budas Ditosos sem ser para maiores de 18.

A história está bem conseguida, é interessante, a escrita é fluida, mantém-nos agarrados e tem o seu quê de poético. Faz-se uma reflexão sobre o amor, as diferentes formas de amar e ser amada, sem se cair em julgamentos ou preferências, ou mesmo ideiais de romantismo bacocos. Camilla tem tanto de apaixonada como de racional, e consegue manter alguma coerência na sua vida, apesar dos contratempos. As personagens que a rodeiam são também fascinantes, e tudo isto tornou este livro muito prazeiroso.

Recomendo a todos os que gostam duma boa história de vida, com amor à mistura, mas que não se esgota nisso.

Goodreads Review

 

Quimera

rosa lobato faria

Eu quis um violino no telhado

e uma arara exótica no banho.

Eu quis uma toalha de brocado

e um pavão real do meu tamanho.

Eu quis todos os cheiros do pecado

e toda a santidade que não tenho.

Eu quis uma pintura aos pés da cama

infinita de azul e perspectiva.

Eu quis ouvir ouvir a história de Mira Burana

na hora da orgia prometida.

Eu quis uma opulência de sultana

e a miséria amarga da mendiga.

Eu quis um vinho feito de medronho

de veneno, de beijos, de suspiros.

Eu quis a morte de viver dum sonho

eu quis a sorte de morrer dum tiro.

Eu quis chorar por ti durante o sono

eu quis ao acordar fugir contigo.

Mas tudo o que é excessivo é muito pouco.

Por isso fiquei só, com o meu corpo.

Rosa Lobato de Faria