Truque Tóxico

al-berto

Volto ao quarto de pensão, fumo até ao vómito
isto é : drogo-me…..
….abro a caixa de papelão, aparentemente cheia de sonhos
escolho um, fumo mais erva, nenhum sonho me serve,
abro a caixa dos pesadelos…..
o silencio ocupa-me e da caixa libertam-se corpos
cores violentas, olhares cúbicos, pássaros filiformes
cadeiras agressivas
limo as arestas fibrosas dos objectos
arrumo-os pelo quarto, de preferencia nos cantos
dou-lhes novos nomes, novas funções, suspiro extenuado
embora a sonolenta tarefa não tenha sido demorada
….outra caixa, azulada, abro-a
entro nela e fecho-a, o escuro solidifica-se na boca
tenho medo durante a noite
alguém se lembrou de atirar fora a caixa……
….luzes, umbigos obscurecidos pelas etiquetas
dos pequenos produtos de consumo, tóxicos
FRAGIL – MANTER ESTE LADO PARA CIMA
NÃO INCLINAR
TIME TO BUY ANOTHER PACKET
O quarto está completamente mobilado de corpos
explodem caixas, o sangue alastra
estampa-se nas paredes sujas de calendários e cromos
de pin-ups obscenas
….fendas de bolor no espelho
o reflexo do corpo arde como uma decalcomania
TIME TO BUY ANOTHER PACKET
todos dormem dentro de caixas, uma serpente flutua
falamos baixinho
não se ouvem mais barulhos de cidade
o sono e o cansaço subiram-me á boca
….movemo-nos lentamente para fora de nossos corpos
e devastamos, devastamos….

Al Berto

Postscriptum

al-berto

… apercebo o lume dum coração antigo e simples
atravesso a cor luminosa dos sonhos sem me deter…
… aqui deixo o espólio daquele cuja vida
é cintilação de lugares nítidos…

(um pouco de café, uma carta, um pedaço de vidro)

… tenho a certeza de que se virasse o corpo do avesso
ficaria tudo por recomeçar…
… mas se aqui voltares
talvez encontres estes papéis escritos
no recanto mais esquecido da noite… talvez
descubras o vazio onde o corpo desgasto esperou…

… vou destruir todas as imagens onde me reconheço
e passar o resto da vida assobiando ao medo…

Al Berto

Livros que Recomendo – Lunário

lunario

Hoje venho recomendar um livro de um poeta, mas que não é um poema. Será talvez prosa poética, e a sua temática está também imbuída dum certo ennui comum a alguma poesia. Tudo boas razões para recomendar este livro de Al Berto. Editado pela Contexto em 1988, reflecte profundamente sentimentos da noite lisboeta dessa década.

Em Lunário seguimos a vida de Beno, um homem solitário mas rodeado de pessoas que povoam os seus dias e que vão todas, aos poucos, vetando-o ao abandono. Beno lida com os seus fantasmas pessoais através das pessoas que se cruzam na sua vida, um grupo desconexo de pessoas que vão andando pela noite (e pela vida) à deriva, sem um propósito, sem outra ambição que não fosse viver depressa e intensamente, e morrer de preferência ainda jovem.

Recheado de passagens muito belas, este é um livro forte e intenso, e que não nos deixa indiferentes. Eu própria já o li mais que uma vez, e de vez em quando volto lá. É pequeno, mas recheado de emoções intensas.

Recomendo a todos os amantes de poesia, de prosa diferente, de histórias que andam ao sabor do vento e da noite.

Boas Leituras!

De imobilidade em imobilidade a vida avançou, avançou
por ininteligíveis iluminações. Hoje, neste fim de século,
desloco-me sem saber como dentro das fotografias que revestem as paredes
deste quarto. E é-me indiferente estar aqui. Sempre que posso fujo,
fujo no olhar que cegou o meu. Porque eu fujo e vou com tudo
aquilo que me chama e toca. Vou com o azul dos olhos do
marçano ali da esquina, vou com as folhas das árvores no outono da
minha rua, vou com a noite à procura da manhã sobre o rio. Vou
pelos arranha-céus acima e contemplo dos altos terraços o sono
esbranquiçado dos mortos. Vou com o teu corpo que me desgasta a
memória doutros corpos e me transforma em esquecimento… vou,
vou sempre, pela humidade dos cardos presos em tua boca.

Abro depois as mãos, e não há mar nas suas linhas, nem
barcos que venham descansar na ponta dos dedos, e a linha do
coração – repara – é uma calosidade. E por uma noite da
imensa cegueira, quando já morar definitivamente em ti,
abandonar-te-ei… à hora dos répteis recolherem o calor nas fissuras do
tempo.

Intacto, irei à procura do merecido repouso.

Hoje É Dia de Coisas Simples

al-berto

 

hoje é dia de coisas simples
(Ai de mim! Que desgraça!
O creme de terra não voltará a aparecer!)
coisas simples como ir contigo ao restaurante
ler o horóscopo e os pequenos escândalos
folhear revistas pornográficas e
demorarmo-nos dentro da banheira
na aldeia pouco há a fazer
falaremos do tempo com os olhos presos dentro das
chávenas
inventaremos palavras cruzadas na areia… jogos
e murmúrios de dedos por baixo da mesa
beberemos café
sorriremos à pessoas e às coisas
caminharemos lado a lado os ombros tocando-se
(se estivesses aqui!)
em silêncio olharíamos a foz do rio
é o brincar agitado do sol nas mãos das crianças
descalças
hoje

Al Berto