Carta a Meus Filhos Sobre os Fuzilamentos de Goya

jorge_sena

 

Poema dito por Mário Viegas AQUI!

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de urna classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de té-la.
É isto o que mais importa – essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
– mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E. por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

Jorge de Sena

Livros que Recomendo – A Casa dos Budas Ditosos

A casa dos budas ditosos

Já começava a faltar por aqui a recomendação dum bom livro erótico. Então e porque razão, de tantos que já li, começar exactamente por este? Bom, primeiro porque tinha de começar por algum lado, depois porque nada melhor do que começar por um livro escrito na nossa língua e que é para além de literatura erótica, também muito descontraído, descomprometido, e sem leituras moralistas associadas. Os meus favoritos, portanto.

Já antes tinha falado brevemente nele aqui no blog, naquele que deve ser o meu artigo mais lido de sempre, já que pelo menos uma vez por dia alguém vem cá parar vindo dum motor de busca qualquer. O poder dum bom título, creio eu! Mas resolvi finalmente vir recomendá-lo como bom livro que é. Mas de que trata realmente, e quem são estes budas ditosos?

Escrito para fazer parte da colecção Plenos Pecados como representante da luxúria, este livro parte da premissa que o autor recebeu umas cassetes entregues no seu prédio onde uma senhora de 68 anos conta a sua vida desregrada e todas as suas experiências sexuais que foram vastas e experimentalistas. Este é um livro que tem dividido opiniões e que quando foi editado no Brasil chegou mesmo a ser proibida a sua venda em supermercados dado ao conteúdo explicito. No entanto hoje em dia (50 Shades depois, diria eu) já é vendido livremente apesar de continuar polémico.

Se nos limitarmos a olhar para o superficial, vemos apenas um desfilar de descrições de actos sexuais, contadas com muito bom humor e descontracção, mas nada mais que isso. No entanto, por trás das aparências e olhando ao contexto histórico brasileiro, podemos encontrar um subtexto de critica social e politica muito subtil, que desafia as convenções e os moralismos instituídos, bem como as nossas ideias pré concebidas sobre a sexualidade.

Está longe de ser um livro consensual. Se derem uma olhada aos comentários no Goodreads vêem que as avaliações são 5 ou 1 e os comentários fazem jus a esse facto. É um livro que se ama ou odeia. Eu gostei muito e recomendo, mas vão avisados, é preciso estômago e mente (muito) aberta. Leiam por vossa conta e risco.

Boas Leituras!

 

Caminho Imperfeito

Caminho Imperfeito

Há alguns anos atrás comprei um livro de José Luís Peixoto na feira do livro. Era Uma Casa na Escuridão, e aproveitei que ele estava lá numa sessão de autógrafos para me pôr na fila à espera de uma assinatura no meu exemplar. Assim aconteceu, uma assinatura, um beijinho, um sorriso e umas palavras do autor que me disse: sabes, este livro é um bocadinho negro, pesado, mas eu costumo dizer que não é mais pesado que o Telejornal. Eu agradeci, e disse que no ano seguinte logo diria o que tinha achado, coisa que nunca aconteceu. Mas vim-me embora a pensar no que o teria levado a dizer isso. Teria eu um ar frágil, ou inocente? Deveria ter respondido que já levava um livro de Sade no saco?  Quando li o livro percebi o que ele me quis dizer, mas não deixei de achar curioso.

Vem isto a propósito de José Luís Peixoto dizer neste livro que nós leitores fazemos assunções acerca dos autores que lemos, principalmente se escrevem não ficção, e ficarmos desiludidos quando não se comportam na vida real de acordo com as expectativas que criamos deles. É justo. Sei do José Luís que é fã de Moonspell, como eu, frequentou o Gingão na mesma altura que eu (descobri-o agora, ao ler este livro) e uma das vezes que esteve na Tailândia, eu também lá estava.

Mas, acima de tudo, tem uma escrita bonita, não imediata, que me obriga a pensar, e é por isso que sou fã dele. E foi isso que aconteceu mais uma vez, com um livro que tanto nos transporta à Tailândia, a Las Vegas ou às memórias do escritor. Que nos põe a reflectir sobre o impacto do turismo na representação cultural dum povo, sobre os refugiados birmaneses ou sobre a diversidade de experiências pessoais. Que me fez reflectir que necessariamente a minha Tailândia é diferente da dele, e diferente da de todos os outros viajantes que connosco se cruzam em cada momento, e isso é válido para qualquer país que se visite.

Gostei do livro, recomendo a fãs do escritor, de literatura de viagens e da Tailândia.

E meu caro José Luís, se algum dia nos cruzarmos, eu quebro a minha regra pessoal de nunca me meter com gente conhecida, porque aceito o desafio da tatuagem!

Goodreads Review

Boas leituras!

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A Verdade Sobre os Animais

truth about animals

Ou pelo menos alguns.

Em 1822 o Conde Christian Ludwig von Bothmer estava a caçar no seu castelo em Klutz, na Alemanha, quando abateu uma cegonha que trazia consigo algo estranho. O seu longo pescoço trazia atravessado uma longa lança de madeira, cheia de pinturas e gravações que cedo se descobriu serem de origem africana. E só aí se descobriu um enigma milenar. O que acontece às cegonhas que desaparecem todos os Invernos? Até então pensava-se que se transmutavam noutros animais (inclusive humanos), que hibernavam, ou até mesmo que ficavam dormentes no fundo de lagos.

São este tipo de curiosidades que enchem este livro, sobre bichos fofinhos como a cegonha, mas essencialmente sobre os mal amados como os morcegos, os abutres e os sapos. O livro está muito bem escrito, cheio de sentido de humor e se as minhas aulas de História do Pensamento Biológico tivessem tido metade da piada deste livro, eu teria faltado muito menos vezes.

Livros como este, escritos por cientistas (a autora é uma zoóloga da National Geographic com um largo currículo no estudo de preguiças, fundadora da Sociedade para Apreciação das Preguiças), mas bem escritos, com bom humor e recheados de factos que os tornam ao mesmo tempo informativos e interessantes, fazem mais pelo interesse pela ciência do que muitas aulas a que somos obrigados a assistir.

Neste livro vamos encontrar, como já disse, muitas curiosidades sobre pandas e hienas, perceber que as preguiças são afinal um prodígio de adaptação ao meio em que vivem, mas temos também uma lição de História Natural, e como os métodos de investigação evoluíram (e ainda bem) ao longo dos tempos. Devemos muito aos primeiros naturalistas que, aventureiramente, se lançaram em busca de explicações para o mundo que nos rodeia, mas os métodos que eles usavam fazem-nos hoje tremer por dentro. O ilustre cientista Lazzaro Spallanzani, responsável por desmistificar a Teoria de Geração Espontânea e primeiro a estudar a ecolocalização dos morcegos, recorreu a métodos de investigação que tinham tanto de sistemáticos como de assustadores, e muitos morcegos sofreram nas suas mãos. No entanto, o modo como tudo está descrito não pode deixar de nos pôr pelo menos um sorriso nos lábios.

Mas não pensemos que hoje é tudo um mar de rosas, pois se lermos o capítulo sobre os fofíssimos pandas, e o modo como eles estão a ser reproduzidos em cativeiro, em tudo semelhantes às puppy farms que tanto queremos extinguir, em nome de serem usados como moeda de troca em negócios diplomáticos, se calhar vamos pensar duas vezes da próxima vez que quisermos partilhar um vídeo viral daqueles bebés de cativeiro.

Aconselho a todos os que são fãs de National Geographic, natureza, conhecimento, história e sobretudo livros bem escritos que nos façam pensar.

Goodreads Review

Boas Leituras!

There is nothing terminally wrong with these animals that we need to fix; the only thing we need to fix is to give them their home back.” Sarah Bexell agreed. “I really worry that it is wildlife conservation’s way of saying, ‘see, guys, we can do this, we are scientists and we’re fixing this huge biodiversity crisis problem and we can right the wrongs of our entire species by doing these little projects.’ it’s a feelgood story. The public feels good and sits back and eats their potato chips in their la-Z-boys and drives their SUVs, has a five-bedroom house and three kids, and says, ‘Great, those scientists are out there fixing this problem for me,’” she said. “but science is not going to save biodiversity; a shift in human behavior is the only thing that is going to save it. I think there needs to be more effort, first and foremost, in getting the human population under control globally, and for people to start contemplating not being such mass consumers.”

 

Portugal Futuro

ruy-belo-l

 

Poema dito por Mário Viegas AQUI!

O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro

Ruy Belo

Livros que Recomendo – American Gods

american gods

Depois de quase dois anos a ler/reler as aventuras do Sandman, nada como vir aqui recomendar um dos meus livros favoritos deste autor. Imaginem toda a imagética delicada e refinada do senhor dos sonhos, mas traduzida para um livro de ficção. O resultado é uma história envolvente, cativante, e que nos deixa a pensar em todas as possibilidades que o nosso mundo ainda pode ter encerradas por trás das aparências.

Em American Gods, Neil Gaiman conta-nos a história de Shadow, um homem que acabou de sair da prisão em circunstâncias não muito felizes, e que vai arranjar um emprego como ajudante dum homem misterioso chamado Mr. Wednesday. Com ele vai viajar um pouco por toda a América contactando estranhas personagens e vivendo aventuras no mínimo duvidosas, que vão não só pôr em perigo a sua integridade física, como levá-lo a fazer descobertas interessantes sobre a sua própria identidade.

Mas esta é apenas a camada superficial da história que está depois envolta em inúmeras sub-histórias que são tão ou mais interessantes que a principal e que nos dão a conhecer deuses mitológicos do folclore mundial, mas também deuses recém-criados pelas nossas obsessões modernas. É mesmo a luta entre estas duas identidades que em última análise vai selar o destino do nosso personagem e que é uma analogia à nossa própria luta interior entre submetermo-nos a tradições ou abraçar o futuro sem reservas.

No final de tudo, e não surpreendentemente, o livre arbítrio sai vencedor, mas não sem antes nos levar numa jornada alucinante por batalhas épicas e viagens intensas cheias de personagens fascinantes. O meu favorito, Mr. Nancy, deu origem mais tarde a um livro em nome próprio, Anansy Boys, que também gostei muito, mas que falarei mais tarde.

Entretanto o livro foi adaptado para uma série televisiva que estreou em 2017 algures num canal americano, mas que eu não tive oportunidade de ver, e acerca da qual estou apenas medianamente curiosa, porque não sou grande fã de séries. Tendem a prolongar-se até ao infinito e a perder um pouco da magia da palavra escrita. No entanto, acho que me cruzarei com esta um dia.

Até lá recomendo este livro a todos os fãs de fantasia, de histórias bem contadas com um travo a antiguidade, mitologia, e sabedoria ancestral. Neil Gaiman é não só um excelente contador de histórias como é dotado dum profundo conhecimento de mitologia e história de arte, o que enriquece imensamente a sua prosa. Aconselho vivamente.

Boas leituras!

Seventeen

seventeen

Mais uma vez recorri ao Netgalley para arranjar uma leitura diferente, e este autor, Hideoa Yokoyama apresentava-se como um mestre do thriller asiático. Foi com essa expectativa que comecei a ler este livro, uma investigação às causas dum grande desastre aéreo no Japão, com 520 mortos, o maior até então.

A realidade, no entanto, foi um bocadinho diferente, já que de investigação o livro teve muito pouco e centrava-se essencialmente em office politics, lutas de poder nos bastidores dum pequeno jornal local que ficou encarregue, um pouco por acidente, de cobrir a notícia da queda do avião. Através destas peripécias podemos ter um bocadinho de noção de como é rígida a hierarquia num local de trabalho japonês, como as coisas se vergam a outros interesses maiores para lá de simplesmente relatar as notícias.

Neste livro seguimos Kazumasa Yuuki, um homem de 40 anos, já velho para reporter de rua segundo os padrões da altura, e a sua luta para conseguir gerir o cargo de chefe de reportagem no caso da queda do avião, enquanto batalha com os seus próprios demónios internos que o tornam irascível e de pavio curto.

O livro foi interessante, se bem que por vezes difícil de seguir (não estou muito habituada a nomes japoneses e por vezes confundia algumas personagens), e uma das partes que descreviam no resumo e que me levou a pedir o livro, a escalada duma montanha dificil, quase não aparece.

Boas Leituras!

Goodreads Review

Man Booker International 2018

Manbooker 2018

 

No passado dia 12 de Abril, quinta feira, foi anunciada a lista de finalista ao prémio Man Booker International, ou seja livros que foram traduzidos para o inglês. De todos eles apenas conheço o da francesa Virginie Despentes, mas gostei bastante e falei dele aqui no blog.

Os outros serão, como é hábito, uma boa sugestão de livros a conhecer, podem saber a lista toda no site oficial aqui.

Boas Leituras!

Cantiga dos Ais

mario viegas

 

Podem ouvir o poema dito por Mário Viegas AQUI!

Os ais de todos os dias,
os ais de todas as noites.
Ais do fado e do folclore,
o ai do ó ai ó linda.

Os ais que vêm do peito,
ai pobre dele, coitado
que tão cedo se finou!

Os ais que vêm da alma.
Ais d’ amor e de comédia,
ai pobre da rapariga
que se deixou enganar…
ai a dor daquela mãe.

Os ais que vêm do sexo,
os ais do prazer na cama.
Os ais da pobre senhora
agarrada ao travesseiro
ai que saudades, saudades,
os ais tão cheios de luto
da viúva inconsolável.
Ai pobre daquele velhinho:
_ai que saudades menina,
ai a velhice é tão triste.

Os ais do rico e do pobre
ai o espinho da rosa
os ais do António Nobre.
Ais do peito e da poesia
e os ais de outras coisas mais.
Ai a dor que tenho aqui,
ai o gajo também é,
ai a vida que tu levas,
ai tu não faças asneiras,
ai mulher és o demónio,
ai que terrível tragédia,
ai a culpa é do António!

Ai os ais de tanta gente…
ai que já é dia oito
ai o que vai ser de nós.

E os ais dos liriquistas
a chorar compreensão?
ai que vontade de rir.

E os ais de D. Dinis
Ai Deus e u é…

Triste de quem der um ai
sem achar eco em ninguém.
Os ais da vida e da morte
Ai os ais deste país…

Mendes de Carvalho

Livros Que Recomendo – Cloud Atlas

cloud atlas

Este deve ser um dos raros casos em que ver o filme me puxou a ler o livro. A ser honesta, o grande impulsionador das duas coisas até foi o outro peixe cá de casa, mas eu fiquei igualmente rendida.

Comecemos pelo início. Fomos ver o filme no velho e já desaparecido cinema do Fonte Nova, e quando as três horas chegaram ao fim nós nem queríamos acreditar. Parecia que o tempo não tinha passado, tal era o ritmo vertiginoso do filme. Não foi consensual na altura, houve muita gente que não gostou, mas nós ficámos apaixonados, dissecamos o argumento e acabámos por ficar com curiosidade em ler o livro.

Cloud Atlas conta-nos seis histórias que na realidade são só uma. A evolução de uma personagem com uma marca de nascença específica ao longo de várias vidas, simplisticamente falando. Mostra-nos como estamos todos ligados através do tempo e como todas as nossas acções têm consequências. No limite, mostra-nos que o modo como a posteridade nos recorda pode ser bastante diferente daquilo que fomos.

A estrutura do livro e do filme são radicalmente diferentes. Enquanto o filme é caos e ritmo, o livro está construído como um espelho. Temos metade de cada história por ordem cronológica, até à sexta história, e depois vemos as conclusões por ordem inversa. Como se tivessem fotocopiado o livro e fechado a meio. Assim: historia 1, 2, 3, 4, 5, 6, 5, 4, 3, 2, 1. Confuso? Nada mesmo quando se lê.

Cada secção é escrita num estilo diferente e está interligada aos personagens da secção anterior de algum modo, tornando este livro num exercício de escrita notável. Tal como o filme, o livro também não é consensual, e há muito quem não tenha gostado ou não tenha mesmo conseguido conseguir ler.

Este livro chegou aos finalista para o prémio Man Booker de 2004 e fez-me ficar fã do autor, de quem tenho vindo lentamente a ler toda a obra, que está também toda interligada com personagens que se repetem e que dão um sentido de unidade, como se David Mitchell estivesse não a escrever livros individuais mas uma grande história completa em capítulos. Aqui podem encontrar um guia para não se perderem em todas as ligações feitas pelo autor ao longo dos livros.

De qualquer modo é um livro que aconselho, de mente aberta e vontade de ser desafiados.

Boas Leituras!

Souls cross ages like clouds cross skies, an’ tho’ a cloud’s shape nor hue nor size don’t stay the same, it’s still a cloud an’ so is a soul. Who can say where the cloud’s blowed from or who the soul’ll be ‘morrow? Only Sonmi the east an’ the west an’ the compass an’ the atlas, yay, only the atlas o’ clouds.