Passepartout

alberto pimenta

Estou aqui no mundo
acho eu, está nos registos
e acho que isso
não tem dúvida,
tanto para filósofos
idealistas como
realistas,
embora ambos
levantem dúvidas
acerca do que afirmam os registos
pois para uns
as palavras afirmam coisas e
nem sempre as coisas
que afirmam
confirmam as palavras
que as afirmam e,
para os outros é o contrário.
isso já se sabe,
mas a palavra estou
afirma tudo isso
ao mesmo tempo
e não é de há pouco,
afirma que estou lá
horas e horas, dias e dias, e até
meses, centenas e centenas
de meses, milhares acho que não
mas não tenho a certeza,
a matemática
é que ainda assim
ajuda a esclarecer:
dois caracóis
e dois ramos de salsa
são quatro,
mais dois alhos
são seis,
mas isso é na panela,
a magia está
nela, porque
passada meia hora
aliás vinte e tal minutos
— gosto de ser exacto —
já são outra vez
só dois, e depois
nem é nenhum,
porque a casca não conta;
volta a ser qualquer coisa
passadas horas mas não sei
se conta, nem quantos são.
mas fora a culinária,
hoje a matemática
é precisa para tudo,
não se faz nada sem ela,
nem sequer sexo: quantas são e
quais as variantes? só com algoritmo,
o simples ritmo claro que já não conta.
as excepções, além da culinária,
são só duas: apostas
na banca e no banco,
banco de futebol, claro: estas
é melhor na lua cheia,
na banca é melhor na nova,
já não pode haver mais perdas.
lua nova lua cheia
cinquenta por cento de cada,
mas com os quartos vazios, e depois
os repetidos carimbos
doze por cento por dia parece que é certo
mas pode ser mais pode ser menos,
pode-se ganhar um, pode-se perder outro,
e perto disso por dia,
mais tanto por noite,
depende dos marcados,
note-se bem!
nota-se e anota-se bem,
é a lua e a banca,
sobe, desce,
cresce mingua
daqui para ali
e depois para trás
e
de novo para a frente:
é o tempo que passa,
dito melhor passeia,
a matemática conta,
passa tempo passo eu no tempo
mas estou, fico
e pássaro (lindo jogo
tema tico-tico)

diz ela:
conhece Kirkegaard?

eu pergunto:
em que clube joga?

Alberto Pimenta

Meu País Desgraçado

sebastiao-da-gama

Meu país desgraçado!…
E no entanto há Sol a cada canto
e não há Mar tão lindo noutro lado.
Nem há Céu mais alegre do que o nosso,
nem pássaros, nem águas…

Meu país desgraçado!…
Porque fatal engano?
Que malévolos crimes
teus direitos de berço violaram?

Meu Povo
de cabeça pendida, mãos caídas,
de olhos sem fé
— busca, dentro de ti, fora de ti, aonde
a causa da miséria se te esconde.

E em nome dos direitos
que te deram a terra, o Sol, o Mar,
fere-a sem dó
com o lume do teu antigo olhar.

Alevanta-te, Povo!
Ah!, visses tu, nos olhos das mulheres,
a calada censura
que te reclama filhos mais robustos!

Povo anémico e triste,
meu Pedro Sem sem forças, sem haveres!
— olha a censura muda das mulheres!
Vai-te de novo ao Mar!
Reganha tuas barcas, tuas forças
e o direito de amar e fecundar
as que só por Amor te não desprezam!

Sebastião da Gama, in ‘Cabo da Boa Esperança’

Sem Título

andreia-faria

Tenho a pedir-vos que não reutilizeis mais nada.
Esse edifício junto à praia, deixai-o
entregue às ruínas,
às folhas do milho,
ao ar salgado.

Que as crianças possam tropeçar nas lajes soltas
e no átrio ecoe, como uma pedreira,
o desejo de muitas mãos.

Deixai dormir as mariposas dentro de lâmpadas partidas
e as formigas engrossarem pelos cantos
como sal.

Não inventeis mais nada,
nem formas eloquentes de evitar que o bronze oxide.
Aceitai o suor do tempo.

Que algumas coisas apodreçam.
Que os elefantes atravessem a planície.
Que as veias rebentem
do esforço de permanecer em pé.

E que nem tudo se sustente como a rosa
se sustenta de florir.

Deixai, deixai os vários pisos incomunicáveis,
o desvão ser cortejado pelo giz dos aviões,
que a lua pouse ali aberto o crânio,
que lhe bata o sol.

Ainda são precisos templos
onde o pó seja gentil
e incensado
como os pés pela caruma dos pinhais.

Andreia C. Faria em Tão bela como qualquer rapaz

Alone With Everybody

bukowski

the flesh covers the bone
and they put a mind
in there and
sometimes a soul,
and the women break
vases against the walls
and the men drink too
much
and nobody finds the
one
but keep
looking
crawling in and out
of beds.
flesh covers
the bone and the
flesh searches
for more than
flesh.

there’s no chance
at all:
we are all trapped
by a singular
fate.

nobody ever finds
the one.

the city dumps fill
the junkyards fill
the madhouses fill
the hospitals fill
the graveyards fill

nothing else
fills.

Charles Bukowski

Truque Tóxico

al-berto

Volto ao quarto de pensão, fumo até ao vómito
isto é : drogo-me…..
….abro a caixa de papelão, aparentemente cheia de sonhos
escolho um, fumo mais erva, nenhum sonho me serve,
abro a caixa dos pesadelos…..
o silencio ocupa-me e da caixa libertam-se corpos
cores violentas, olhares cúbicos, pássaros filiformes
cadeiras agressivas
limo as arestas fibrosas dos objectos
arrumo-os pelo quarto, de preferencia nos cantos
dou-lhes novos nomes, novas funções, suspiro extenuado
embora a sonolenta tarefa não tenha sido demorada
….outra caixa, azulada, abro-a
entro nela e fecho-a, o escuro solidifica-se na boca
tenho medo durante a noite
alguém se lembrou de atirar fora a caixa……
….luzes, umbigos obscurecidos pelas etiquetas
dos pequenos produtos de consumo, tóxicos
FRAGIL – MANTER ESTE LADO PARA CIMA
NÃO INCLINAR
TIME TO BUY ANOTHER PACKET
O quarto está completamente mobilado de corpos
explodem caixas, o sangue alastra
estampa-se nas paredes sujas de calendários e cromos
de pin-ups obscenas
….fendas de bolor no espelho
o reflexo do corpo arde como uma decalcomania
TIME TO BUY ANOTHER PACKET
todos dormem dentro de caixas, uma serpente flutua
falamos baixinho
não se ouvem mais barulhos de cidade
o sono e o cansaço subiram-me á boca
….movemo-nos lentamente para fora de nossos corpos
e devastamos, devastamos….

Al Berto

Um Coração de Sangue

Daniel Faria

Um coração de sangue
Um coração de xisto e aço
Um coração angular e redondo
Como a pedra que te abre
Do interior do chão
Um coração solar
De granito
De carne
Curado da noite de nascença

Um coração de homem
Um coração de homem vivo
Um coração de criança ao colo
Interior
-Mais interior do que o sangue no coração que me darás-
Peço um coração
Nuclear

Daniel Faria in Explicação das Árvores e de Outros Animais

Primeiro Amor

adilia_lopes

gostava muito dele
mas nunca lhe disse isso
porque a minha criada tinha-me avisado
se gostar de um rapaz
nunca lhe diga que gosta dele
se diz
ele faz pouco de si para sempre
os rapazes são maus
eu não era bela
nem sabia quem tinha pintado os Pestíferos de Java
resolvi assim escrever-lhe cartas anónimas
escrevia o rascunho num caderno pautado
não sei hoje o que escrevia
mas sei que nunca escrevi
gosto muito de ti
e depois pedia a uma rapariga muito bonita
que passasse as cartas a limpo
eu acreditava que quem tinha uns cabelos
assim loiros e a pele fina
devia ter uma letra muito melhor que a minha
agora que conto isto
vejo que deixo muitas coisas de fora
por exemplo que o meu primeiro amor
não foi este mas o Paulo
o irmão da rapariga bonita

Adília Lopes

She’s becoming a lady of a certain age

raquel

Recomeça se puderes…
em rigor conselho ou aviso de médico,
e tantas as coisas que, percebo, admito,
não quero, não posso, não sou, ainda sou,
não sou a cor, sou os químicos, a química,
da tinta das canetas com que escrevo,
da tinta com que escondo os brancos cabelos,
sou o carvão do lápis,
sou o fio de cabelo que atravessa a agulha,
sou esta boca que ainda te debulha,
sou três dioptrias,
três dentes chumbados,
três amores amados,
se eu soubesse não tinha casado,
sou um triângulo, sou a geometria,
seno, co-seno e tangente, sou trigonometria,
pudesse eu ser a tua sede, a tua alegria,
sou uma janela sem gelosia,
sou vazia, uma garrafa de plástico,
sou todos os plásticos no mar,
nas entranhas de todos os peixes,
sou com folhas secas a solidão de uma piscina,
se eu te der a mão nada mas não me deixes,
sou o trânsito em hora de ponta,
sou um animal perdido no meio do trânsito,
sou poluição,
sou vento de incêndio,
sou uma inundação, uma decepção,
sou o candeeiro de rua
onde urinam todos os cães da rua,
sou o teu cão no dia em que morreu,
sou o miolo do pão, o caroço da cereja,
na Índia monção, na América furacão
e só de poemas tenho inveja,
sou o barulho do apito do amolador de tesouras,
sou das nuvens uma arcaica lavoura,
sou da lavoura uma vinha velha e vindimada,
sou os pedais da bicicleta do carteiro,
sou o cheiro da relva acabada de cortar,
sou o cheiro a pão acabado de cozer,
sou os pontos das tuas cicatrizes,
sou das meretrizes a tua meretriz
e ainda não comecei a dizer-te o que sou,
sou tudo o que faço,
sou o que desfaço,
sou a faca de aço do rapaz do talho,
sou um velho carvalho, o chão do teu soalho,
sou os teus pés quando descalços
e não me vendo nem te vendo a retalho,
sou o avental ensanguentado onde o rapaz do talho limpa as mãos,
sou Verónica, Madalena, Pavia e Maria,
respeitinho que já tenho idade para ser tua tia
mas com esses sonhos tão grandes nos olhos ainda te fazia.

Raquel Serejo Martins

Devia Morrer-se de Outra Maneira

jose-gomes-ferreira

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: «Fulano de tal
comunica a V. Ex.ª que vai transformar-se em nuvem
hoje às 9 horas. Traje de passeio».
E então, solenemente, com passos de reter tempo,
fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos
todos assistir à despedida.
Apertos de mão quentes. Ternura de calafrio.
«Adeus! Adeus!»
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes… (primeiro, os olhos…
em seguida, os lábios… depois, os cabelos…) a carne,
em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo… tão leve… tão subtil… tão pólen…
como aquela nuvem além (vêem?) – nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis…

José Gomes Ferreira