Um Melro no Tempo

luis filipe parrado

Negro, anónimo, bravio,

demora-se por uns segundos apenas

(em voo é mais difícil de captar)

Na cerca de ferro forjado

Do jardim público.

Eu escuto-o, fico em suspenso. E confesso

que, lidos os mapas astrais

e os melhores tratados

de ornitologia,

continuo às cegas,

sem compreender porque me comove

tanto este assobio dilacerante.

Consegues ouvi-lo?

Sim. Canta como se tudo estivesse

no seu lugar, como se este

fosse o primeiro de todos os dias do mundo,

como se nada de mal nunca nos pudesse acontecer.

Luis Filipe Parrado

Insinceridade

Vasco Graça Moura

quis-nos aos dois enlaçados
meu amor ao lusco-fusco
mas sem saber o que busco:
há poentes desolados
e o vento às vezes é brusco

nem o cheiro a maresia
a rebate nas marés
na costa de lés a lés
mais tempo nos duraria
do que a espuma a nossos pés

a vida no sol-poente
fica assim num triste enleio
entre melindre e receio
de que a sombra se acrescente
e nós perdidos no meio

sem perdão e sem disfarce,
sem deixar uma pegada
por sobre a areia molhada,
a ver o dia apagar-se
e a noite feita de nada

por isso afinal não quero
ir contigo ao lusco-fusco,
meu amor, nem é sincero
fingir eu que assim te espero,
sem saber bem o que busco.

Vasco Graça Moura 

A Fala do Rosto

jose-tolentino-mendonca

És Tu quem nos espera
nas esquinas da cidade
e ergue lampiões de aviso
mal o dia se veste
de sombra

Teu é o nome que dizemos
se o vento nos fere de temor
e o nosso olhar oscila
pela solidão
dos abismos

Por Ti é que lançamos as sementes
e esperamos o fruto das searas
que se estendem
nas colinas

Por ti a nossa face se descobre
em alegria
e os nossos olhos parecem feitos
de risos

É verdade que recolhes nossos dias
quando é outono
mas a Tua palavra
é o fio de prata
que guia as folhas
por entre o vento

José Tolentino de Mendonça 

História Clínica

joao luis barreto guimaraes

As mamas da Dona Ana eram um
sítio maravilhoso. Maduras (qual
par de mangas) de entre elas saíam
coisas extraordinárias
(notas de 5 para os netos
lenços bordados no Minho) uma ou
outra medalha do mau-génio
do marido. Dessa vez veio à cidade e
o doutor ficou com uma –
ela deixou de poder encravar no meio delas
tudo aquilo e os santinhos
(deste lado uma colina alta e generosa desse
um prado dividido). Num ano
levou-lhe a outra e outra levou-lhe
o marido (ainda há mulheres com sorte:)
está enfim
livre de perigo.

João Luis Barreto Guimarães in Você está Aqui

Pedra Tumular

couto

A minha geração fugiu à guerra,
Por isso a paz que traz não tem sentido:
É feita de ignorância e de castigo,
Tão rígida e tão fria como a pedra.

Desfazem-se-lhe as mãos em gestos frágeis,
Duma verdade inútil por vazia,
E a língua imóvel nega o som à vida,
Por hábito ou por falta de coragem.

Se há rumores lá de fora, às vezes, lembra:
Porque é que pulsa o coração do mundo,
Precipitado, angustioso, ardente?

Mas depressa submerge na indiferença
– Que lhe deram um túmulo seguro;
E o relógio dá-lhe horas certas, sempre.

António Manuel Couto Viana

Don’t Hesitate

Mary Oliver

If you suddenly and unexpectedly feel joy,
don’t hesitate. Give in to it. There are plenty
of lives and whole towns destroyed or about
to be. We are not wise, and not very often
kind. And much can never be redeemed.
Still, life has some possibility left. Perhaps this
is its way of fighting back, that sometimes
something happens better than all the riches
or power in the world. It could be anything,
but very likely you notice it in the instant
when love begins. Anyway, that’s often the
case. Anyway, whatever it is, don’t be afraid
of its plenty. Joy is not made to be a crumb.

Mary Oliver

Vagas

ines lourenço

A colcha da cama desfeita é agora mais leve e mais clara.
As sandálias brancas enviaram
ao armário, a sombra
impermeável das botas. No lugar
do gorro de lã, demora-se hoje
um leve chapéu de palha. Algumas
plantas secaram, mas o calor dos
corpos libertou os lençóis
da sua humilde tarefa, lançando-os
longe como vagas de Agosto.

Inês Lourenço  

Armazém

We remember award-winning poet, Mary Oliver.The Booktopian

Quando mudei de casa
Descobri imensas coisas para as quais não tinha
espaço. O que se faz numa situação destas? Aluguei
um armazém. Enchi-o. Passaram-se anos.
De quando em vez, visitava-o, observava as minhas coisas,
mas nada acontecia, nem uma só
pontada no coração sentia.
À medida que fui envelhecendo, as coisas que realmente gostava
foram diminuindo, mas crescendo
em importância. Então, um dia abri o cadeado
e chamei o homem do ferro-velho. Ele
levou tudo o que lá estava.
Senti-me como um pequeno burrito, quando
o libertam do seu fardo. Coisas!
Queima-as! Queima-as! Faz uma maravilhosa
fogueira! Mais espaço fica no teu coração para o amor,
para as árvores! Para os pássaros, que nada
possuem – a razão de poderem voar.

Mary Oliver

Acabei de Ler – A Thousand Mornings

Mary Oliver

Keep scrolling if you prefer to read in English.

Apesar de ler imensa poesia, é muito raro vir aqui ao Peixinho falar de livros que terminei. Até parece mal, tendo em conta que uma das minhas missões pessoais é partilhar poesia que gosto. No entanto, os livros de poesia são mais como caixas de bombons, e menos como uma boa refeição. Não costumo degustá-los de seguida, são mais algo em que pego quando quero rodear-me de beleza, ou quando quero algo pequeno mas intenso para saborear. Por isso demoro tanto tempo a terminar um livro de poesia, que raramente os contabilizo no Goodreads, ou mesmo falo deles aqui no blog.

Mas não foi esse o caso com esta pequena pérola. Ouvi falar de Mary Oliver no youtube do Jack Edwards, aquele moço que faz furor a falar de livros, e que por acaso tem um gosto literário parecido com o meu. Pareceu-me interessante e resolvi pesquisar. E fiquei absolutamente rendida ao talento desta senhora. Tem uma poesia simples, e que fala exatamente disso, da simplicidade. Da beleza que nos rodeia, da natureza e o seu impacto no nosso bem estar, até no seu pequeno cão que partiu. Uma escrita aparentemente simples, mas que contém tanta verdade e tanta beleza, que me deixou absolutamente rendida. Eu costumo ligar-me mais a poetas portugueses, porque entendo melhor os artifícios de linguagem, mas gostei tanto desta autora que é capaz de se ter tornado numa das minhas favoritas. Contem ver mais poesia dela por aqui às segundas, que já tenho alguns na calha.
Recomendo a todos os amantes de poesia, de natureza, de beleza, ou de todas estas premissas juntas. Rumo ao próximo.
Boas Leituras!

Despite reading a lot of poetry, it is very rare to share here the poetry books that I have finished. Which does not look good, considering the fact that I made it a personal mission to share the poetry I like with my readers. However, poetry books are like a good box of chocolates, and less like a full meal. They are meant to be savoured slowly, in small portions, when I need to surround myself with something good and beautiful. Hence why it takes me so long to finish each book, to the point that I rarely update my Goodreads with them, or share them here.

This was not the case with this small gem. I’ve heard about Mary Oliver in one of Jack Edwards videos. He is the king of BookTube, despite his young age, and we share much of our literary taste. It seemed interesting when he read it, and I went searching for it. And I was absolutely enthralled with this small book, and the author’s talent. The writing seems simple, and it actually speaks about simplicity. And about the beauty that is all around us, about nature and its impact on our wellbeing, and even about the passing away of her small dog. In its apparent simplicity, her writing is filled with truth and awe, and I loved it. I am usually more drawn for Portuguese poets, mainly because I can understand it better, but I have to say this must now be one of my favourite poets. I will be sharing some of her work here in the near future.

I recommend it to all poetry lovers, everyone that loves beauty, nature and the slow pace of a life well lived and enjoyed. You will not regret it. On to the next.

Happy Reading!