Incubadora

jorge s braga

Era tão pequena a mão que
nem o seu dedo mendinho

conseguia agarrar. Pesava
quinhentos gramas e respirava

sem ajuda do ventilador
O coração da sua mãe quase

que não batia com receio de
que ele sufocasse sob o peso

do seu amor

Jorge de Sousa Braga, in ‘A Ferida Aberta’

Portugal

jorge s braga

Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir como se tivesse
oitocentos
Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de
África
só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais
e nunca mais voltasse
Quase chego a pensar que é tudo uma mentira
que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney
e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente
Portugal
Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional
(que os meus egrégios avós me perdoem)
Ontem estive a jogar poker com o velho do Restelo
Anda na consulta externa do Júlio de Matos
Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar
àparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de
rosas
Portugal
Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se contraía a febre do
Império
mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado
Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr encontrar uma pérola que fosse
das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
Sabes
Estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
Como me pude apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu
mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentugal
e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha vontade
Portugal estás a ouvir-me?
Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete Salazar estava no poder nada
de ressentimentos
um dia bebi vinagre nada de ressentimentos
Portugal
Sabes de que cor são os meus olhos?
São castanhos como os da minha mãe
Portugal
gostava de te beijar muito apaixonadamente
na boca

Jorge Sousa Braga in De Manhã Vamos Todos Acordar com uma Pérola no Cu

A Erva da Fortuna

jorge s braga

 

A erva da fortuna cresce como por encanto nas orelhas

dos políticos, o primeiro ministro proclama a amnistia

para os cucos dos relógios, o degelo nas relações inter-

nacionais restabelece o nível das águas nas albufeiras,

o ministro da energia esfrega as mãos de contente.

Embora o boletim meteorológico seja controlado pelo

governo, nuvens cor de chumbo toldam frequentemente

o horizonte, os pescadores de águas turvas procuram o

alto mar, uma chuva de impostos cai de imprevisto ah

a chuva na primavera, escrevem os poetas.

 

As andorinhas podem passar livremente a fronteira. Os

polícias oferecem grinaldas aos condutores de veículos

mal estacionados. O cio invade a assembleia. Os depu-

tados bombardeiam-se com pólen. Um nostálgico do

outono argumenta: a primavera de Praga também foi

de lagartas nas estradas.

Jorge Sousa Braga