Cada Dia Sem Gozo Não Foi Teu

fernando-pessoa

Cada dia sem gozo não foi teu
Foi só durares nele. Quanto vivas
Sem que o gozes, não vives.

Não pesa que amas, bebas ou sorrias:
Basta o reflexo do sol ido na água
De um charco, se te é grato.

Feliz o a quem, por ter em coisas mínimas
Seu prazer posto, nenhum dia nega
A natural ventura!

Ricardo Reis, in “Odes”

Genocídio Poético

claudia r sampaio

Pudesse eu arrebatar-vos
com o que escrevo
ver-vos em fila a tombar que nem
tordos
queda em dominó à escala mundial

pudesse eu espetar-vos os dedos nos olhos
cegar-vos, mutilar-vos
arrancar-vos uma unha em cada sílaba
dilacerar-vos em cada letra
comer-vos um dia de vida à dentada por cada

pensamento meu
que vos explodissem as almas, as casas
e os carros
os empregos e as contas, o sexo
e o nexo
que vos acabasse o rumo, a certeza
a gentileza e a boa vontade

que se transformassem todos
num limão ainda mais amargo que eu
e que depois me espremessem
vocês, este mundo e os outros,
até ao meu infinito.

Cláudia R. Sampaio

Eu Não Tinha Nada de Felino

hmp

Eu não tinha nada de felino, tu sabias
que eu não tinha nada de felino.
Nenhum de nós se admirou quando
medi mal a distância e falhei o salto.
Enquanto ia no ar parecia que era
um salto bom, porém houve qualquer
coisa que correu mal e caí com estrondo
no chão. Ninguém riu. Não era caso
para rir. Grande ilusão ir pelo ar a pensar
que o salto podia ser bom, sem eu ter
nada de felino, sem nunca ter treinado,
sem fazer sequer aquecimento, sem
olho para medir distâncias. Saber medir
distâncias é uma coisa muito importante,
pode falhar-se a vida por milímetros.

Helder Moura Pereira

Livros que Recomendo – Nem Aqui, Nem Ali

bryson

Já não é a primeira vez que recomendo um livro do Bill Bryson no meu estaminé, e o mesmo se aplica a livros de viagens, no entanto é o primeiro livro de viagens deste autor que recomendo. O que é estranho, porque este é o seu principal género, e ele é muito bom a escrever estes livros. Mas Uma Breve História de Quase Tudo é tão genial que tive que o recomendar primeiro.

Este livro relata a viagem que o autor faz pela Europa, recreando os passos que deu na sua juventude com um amigo da escola. 20 anos depois parte em busca do que mudou e do que se manteve igual. Dotado dum sentido de humor bastante sarcástico, que por vezes roça o ofensivo, o livro é delicioso de se ler, tendo em conta que Bill Bryson é um turista americano no sue melhor.

Por cada país que passa faz observações mordazes e certeiras e podemos ter a certeza que nos divertiremos. Tendo sido escrito algures nos anos 90, o nosso país era ainda um alegre desconhecido, por isso estamos ausentes desta narrativa. Fica a questão, se nos dias de hoje os estudantes americanos que planeiam viagens de mochila às costas pela Europa já incluirão ou não o nosso país. Pelo estado em que eu encontro a nossa Baixa de Lisboa sempre que lá vou eu diria que sim, apesar de não ser das melhores coisas para a paisagem tradicional.

Recomendo a todos os que gostam de livros de viagens, de se divertir enquanto lêem e de meditar nas diferenças culturais.

Boas Leituras!

Acabei de Ler – The Fires of Heaven, Wheel of Time #5

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Levei cerca de um mês e uma semana para terminar mais um volume da série de fantasia que comecei a ler o ano passado. Pelo meio, para não me aborrecer, ainda despachei dois livros de poesia e um policial. Estes livros não são um verdadeiro page turner, especialmente porque eu embirro solenemente com as persoangens femininas. São todas aborrecidas, irritantes e cheias de tiques repetitivos. A ideia do autor duma mulher forte era alguém que discutia com todos, comportava-se como uma criança mimada, e aparentemente isso garantia-lhe o respeito dos homens, mas não das outras mulheres igualmente irritantes e criançolas.

Infelizmente este volume centrou-se bastante nessas personagens femininas e não noutras que eu gosto bastante (Perrin), que não tiveram sequer direito a aparecer. Então porque continuo eu a ler isto, considerando que ainda me falta 9 volumes? Porque a história em si não é má, está bem construída, faz sentido, e agora quero saber como acaba.

Não sei se recomendo este livro a alguém que não seja fã incondicional de fantasia e deseje ler todas as obras de referência do género.

Boas Leituras!

Goodreads Review

As Sinfonias de Beethoven

antónio_amaral_tavares

É nas sombras das sinfonias
de Beethoven que se imobiliza  o domingo
a tarde sempre a descer e os cães em pardo
silêncio sentados na pedra que os calou.
Cheiram o vento guardam os nós dos rios
as areias do tempo
as mãos que tremem sobre o pêlo
nesta transfusão de sangue
que não sei se traz vida ou morte
eu cá já não vou para lugar algum
impossivelmente azul
onde quer que não se morresse tanto
e daqui a um nada brotado do medo
acendo a luz que me aquecia apagada.
Beethoven conhecia bem
as pancadas de domingo
amanhã é dia de trabalho.
António Amaral Tavares

Livros que Recomendo – Os Filhos da Meia Noite

rushdie

Hoje venho recomendar um livro que me foi oferecido há alguns anos, e que demorei algum tempo a conseguir. É complexo, por vezes confuso, mas quando finalmente entramos na história e bastante recompensador.

Salman Rushdie é um grande contador de histórias, com um modo refinado de nos mostrar também a história do seu próprio país. Aqui fala-se de Saleem Sinai, um rapaz que nasceu exactamente à meia noite do dia em que a Índia se tornou independente. Isso conferiu-lhe poderes especiais, no seu caso relacionados com a audição e o olfacto, e também a capacidade de estar espiritualmente ligado às outras mil crianças que nasceram à mesma hora e que possuem outros poderes.

Através da história da sua família e do que o rodeia vamos descobrindo uma Índia em evolução, as suas convulsões sociais e religiosas, tudo muitíssimo bem escrito e contado. Este livro ganhou o Man Booker de 1981, se precisasse de mais recomendações.

Recomendo a todos os que gostam de boa literatura, não têm medo de mergulhar de cabeça numa história complexa, e gostam de paragens mais exóticas.

Se quiserem uma review mais completa, vejam aqui.

Boas Leituras!

Acabei de Ler – Inspector Maigret #4

simenon

Já há bastante tempo que tenho o projecto de ler/reler todos os livros de Poirot pela sua ordem de publicação, tarefa hérculea que eu tenho desempenhado lentamente (como sempre, é uma maratona, não um sprint). Depois de ter conhecido o Inspector Maigret através do Netgalley, acabei por estender esse projecto também aos livros de Simenon que são protagonizados por esta personagem.

Ora, como comecei mais tarde, naturalmente estou mais atrás, e supostamente deveria ter lido o livro número 2, The Late Mousieur Gallet. Infelizmente o meu cérebro de recém mamã está severamente debilitado, fiz confusão e saltei directamente para o quarto volume. Após um curtíssimo episódio de pânico obsessivo-compulsivo, resolvi que não era assim tão importante e retomarei a ordem no próximo livro. Mas ainda tenho alguns restos de urticária.

Então, acabei de ler The Carter of La Providence, e foi um livro muito desafiante. Como sabem faço a maioria das minhas leituras em inglês, mas nem sempre isso corre sem sobressaltos. Desta vez todo o livro é passado em cenário náutico, nos canais franceses, e o vocabulário era extremamente específico e também datado. Começa logo pelo título, o que é um carter, sendo que La Providence era o nome de um pequeno barco. O dicionário não foi ajuda neste caso, e depois de alguma investigação acabei por perceber que é uma figura que reboca barcos através dos canais quando estes estão impossibilitados de navegar, nomeadamente quando atravessam elevadores. Neste caso o reboque era feito por dois cavalos.

Passado este percalço inicial, fiquei com uma história bem interessante e onde o culpado não era óbvio, nem o enredo nos era dado de mão beijada. Talvez por não conhecer tanto de Simenon como de Agatha Christie, este ainda consegue ter algum mistério.

Não me vou alongar a relatar a história, mas recomendo-a a todos os que gostam de livros policiais, com uma história bem contada e longe dos estafados cenários anglo-saxónicos.

Boas Leituras!

Goodreads Review